FOLÍCULO PILOSO

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quarta-feira, 14 de março de 2012

PSICOLOGIA E PNL

Descanse em paz: o enterro do “não consigo”

A turma da Quarta série de Ana parecia-se com muitas outras que eu vira antes.
Os alunos sentavam-se em cinco fileiras de seis carteiras. A mesa do professor era na frente, virada para os alunos. O quadro de avisos exibia trabalhos dos alunos.
Em muitos aspectos, parecia uma sala de escola primária tipicamente tradicional. Mesmo assim, algo me pareceu diferente naquele primeiro dia em que entrei ali. Parecia haver uma corrente subterrânea de excitação.
Ana era uma professora veterana de uma cidadezinha de São Paulo, e faltavam apenas dois anos para sua aposentadoria. Além disso, era voluntária ativa num projeto municipal de desenvolvimento de equipes que eu organizara e auxiliara.
O treinamento se concentrava em idéias artísticas de linguagens, capazes de estimular os alunos a se sentirem bem consigo mesmos e assumirem a responsabilidade sobre suas vidas.
O trabalho de Ana era assistir às sessões de treinamento e implementar os conceitos apresentados. Meu trabalho era visitar as salas de aula e encorajar a implementação.
Tomei um lugar vazio no fundo da sala e assisti.
Todos os alunos estavam trabalhando numa tarefa, preenchendo uma folha de caderno com idéias e pensamentos.
Uma aluna de dez anos, mais próxima de mim, estava enchendo a folha de "não consigos".
"Não consigo parar de chupar chupeta."
"Não consigo fazer divisões longas com mais de três números."
"Não consigo fazer com que a Debbie goste de mim."
Sua página já estava pela metade e ela não mostrava sinais de parar. Trabalhava com determinação e persistência.
Caminhei pela fileira olhando as folhas dos alunos. Todos estavam escrevendo sentenças que descreviam o que não conseguiam fazer.
"Não consigo fazer dez flexões."
"Não consigo comer um biscoito só."
A esta altura, a atividade despertara minha curiosidade, e assim decidi verificar com a professora o que estava acontecendo.
Ao me aproximar dela, notei que ela também estava ocupada escrevendo. Achei melhor não interromper.
"Não consigo trazer a mãe de John para uma reunião de professores."
"Não consigo fazer com que minha filha abasteça o carro."
"Não consigo fazer com que Allan use palavras em vez de murros."
Frustado em meus esforços em determinar por que os alunos estavam trabalhando com negativas, em vez de escrever frases mais positivas, ou "eu consigo", voltei para o meu lugar e continuei minhas observações.
Os estudantes escreveram por mais dez minutos. A maioria encheu sua página. Alguns começaram outra.
"Terminem a página em que estiverem e não comecem outra", foram as instruções que Ana usou para assinalar o final da atividade.
Os alunos foram então instruídos a dobrar suas folhas ao meio e trazê-las para a frente da classe.
Quando os alunos chegaram à mesa da professora, depositaram as frases "não consigo" numa caixa de sapatos vazia.
Quando as folhas de todos os alunos haviam sido recolhidas, Ana acrescentou as suas. Ela pôs a tampa na caixa, enfiou-a embaixo do braço e saiu pela porta, pelo corredor.
Os alunos seguiram a professora. Eu segui os alunos.
Na metade do corredor a procissão parou.
Ana entrou na sala do zelador, remexeu um pouco e saiu com uma pá. Pá numa das mãos, caixa de sapatos na outra, Ana saiu para o pátio da escola, conduzindo os alunos até o canto mas distante do playground.
Ali começaram a cavar. Iam enterrar seus "Não consigo"!
A escavação levou mais de dez minutos, pois a maioria dos alunos queria sua vez. Quando o buraco chegou a cerca de um metro de profundidade, a escavação terminou. A caixa de "não consigos" foi depositada no fundo do buraco e rapidamente coberta de terra.
Trinta e uma crianças de dez e onze anos permaneceram de pé, no local da sepultura recém cavada. Cada um tinha no mínimo uma página cheia de "não consigos" na caixa de sapatos um metro abaixo. E a professora também.
Neste ponto, Ana anunciou: "Meninos e meninas, por favor dêem-se as mãos e baixem as cabeças." Os alunos obedeceram. Rapidamente, dando-se as mãos, formaram um círculo ao redor da sepultura. Baixaram as cabeças e esperaram. Ana proferiu os louvores.
"Amigos, estamos hoje aqui reunidos para honrar a memória do ‘Não consigo’. Enquanto esteve conosco aqui na Terra, ele tocou as vidas de todos nós, de alguns mais do que de outros.
Seu nome, infelizmente, foi mencionado em cada instituição pública – escolas, prefeituras, assembléias legislativas e, sim, até mesmo na Casa Branca.
Providenciamos um local para o seu descanso final e uma lápide que contém seu epitáfio.
Ele vive na memória de seus irmãos e irmãs.
‘Eu consigo’, ‘Eu Vou’ e ‘Eu vou imediatamente’. Estes não são tão conhecidos quanto seu famoso parente e certamente ainda não tão fortes e poderosos.
Talvez algum dia, com sua ajuda, eles tenham uma importância ainda maior no mundo. Que ‘Não Consigo’ possa descansar em paz e que todos os presentes possam retomar suas vidas e ir em frente na sua ausência. Amém."
Ao escutar as orações entendi que aqueles alunos jamais esqueceriam esse dia. A atividade era simbólica, uma metáfora da vida. Foi uma experiência direta que ficaria gravada no consciente e no inconsciente para sempre.
Escrever os "Não Consigos", enterrá-los e ouvir a oração.
Aquele havia sido um esforço maior da parte daquela professora. E ela ainda não terminara. Ao concluir a oração ela fez com que os alunos se virassem, encaminhou-os de volta à classe e promoveu uma festa.
Eles celebraram a passagem de "Não Consigo" com biscoitos, pipoca e sucos de frutas. Como parte da celebração, Ana recortou uma grande lápide de papelão.
Escreveu as palavras "Não Consigo" no topo, "Descanse em Paz" no centro e a data embaixo.
A lápide de papel ficou pendurada na sala de aula de Ana durante o resto do ano.
Nas raras ocasiões em que um aluno se esquecia e dizia "Não consigo", Ana simplesmente apontava o cartaz Descanse em Paz.
O aluno então se lembrava que "Não Consigo" estava morto e reformulava a frase.
Eu não era aluno de Ana. Ela era minha aluna.
Ainda assim, naquele dia aprendi uma lição duradoura com ela.
Agora, anos depois, sempre que ouço a frase "Não Consigo", vejo imagens daquele funeral da quarta série.
Como os alunos, eu também me lembro de que "Não Consigo" está morto.


Ly Marques

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