Entenda o que é o refluxo
Vinte milhões de brasileiros sofrem com aquela queimação no tórax que delata o problema, embora muitos não desconfiem do motivo nem o levem tão a sério por Diogo Sponchiato | fotos Eduardo Svezia
Vinte
milhões de brasileiros sofrem com aquela queimação no tórax que delata o
problema, embora muitos não desconfiem do motivo nem o levem tão a
sério. Mas saiba que consertá-lo é o caminho para apagar a azia e evitar
que o incêndio culmine em doenças como o câncer.
A sensação, bastante corriqueira, é a de que a refeição não caiu muito bem e ainda por cima quer voltar. Acompanhada desse tráfego às avessas, vem a queixa de que acionaram um lança-chamas dentro do tórax. O desconforto frequente, às vezes escoltado por uma dor no peito, sinaliza que uma confusão foi armada no esôfago, o tubo muscular encarregado de transportar os alimentos até o estômago. E a causa do suplício tem nome e sobrenome: refluxo gastroesofágico. "É o problema digestivo mais comum nos países ocidentais", afirma o gastroenterologista Ary Nasi, assessor médico do Laboratório Fleury, em São Paulo.
A doença, negligenciada por muita gente, parece estar em franca ascensão. Isso porque anda de braços dados com maus hábitos que, infelizmente, permanecem em voga: a dieta gordurosa, o sedentarismo e o resultado dessa combinação, a obesidade. Antes que um hipocondríaco se atreva a se autodiagnosticar, vale esclarecer que, se o fogaréu capaz de escalar abdômen acima ocorre somente de vez em quando, sobretudo depois daquela feijoada, trata-se de algo natural. "Todos nós temos esse refluxo ocasional", tranquiliza o gastroenterologista Cláudio Bresciani, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, na capital paulista.
O problema nasce quando essa tortura é recorrente e não depende só dos exageros à mesa. "Se acontecer mais de uma vez por semana, há uma suspeita da doença", esclarece Nasi, que também atua no Hospital das Clínicas de São Paulo. Tudo acontece porque o esfíncter, uma válvula que fica na divisa entre o esôfago e o estômago, relaxa demais em momentos inoportunos. "Sua função é impedir a volta da comida", diz Bresciani. Ao perder a pressão, porém, ele deixa de funcionar direito e permite que o conteúdo gástrico retorne, contrariando a lei da gravidade.
O azar é do esôfago. "Ele não está acostumado a conviver com a acidez que vem do estômago", observa o gastroenterologista José Galvão Alves, da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. O suco gástrico, essencial para a quebra dos alimentos, agride o tubo - e o pior é que ele pode subir com pedaços de comida. Com o tempo, o esôfago fica refém de uma inflamação permanente, o que cria um ambiente perfeito para tumores. "A irritação pode levar a alterações no órgão típicas de um quadro chamado esôfago de Barrett, o que aumenta o risco de um dos tipos mais comuns de câncer ali", alerta o cirurgião oncológico Felipe Coimbra, diretor do Departamento de Cirurgia Abdominal do Hospital A.C. Camargo, em São Paulo.
Mas por que cargas d’água o refluxo se torna uma pedra no esôfago de tanta gente? "Uma das principais razões é o esfíncter incompetente", aponta José Galvão Alves. O termo é aplicado quando a válvula afrouxa espontaneamente, deixando a acidez cair na contramão. "O álcool e o cigarro também favorecem seu relaxamento", lembra Ary Nasi. Essa porteira abre sem necessidade por outro motivo: a hérnia de hiato. "Ela acontece quando um pedaço do estômago escapa da musculatura do diafragma e fica fora do lugar", descreve Nasi. Nesse cenário, mais habitual entre os obesos, o conteúdo gástrico reflui facilmente e o esfíncter não consegue freá-lo.
Flagrar o refluxo não é importante apenas para abrandar o incêndio. "Além da inflamação no esôfago, a doença pode influenciar crises de asma, corromper o esmalte dentário e causar tosse crônica e rouquidão", enumera Galvão. A via-crúcis do diagnóstico começa, é claro, com a história do paciente. O primeiro exame requisitado é a endoscopia, que avalia se há uma irritação no esôfago. "Mas um resultado normal não afasta o refluxo", diz Nasi. Para esclarecer a dúvida, os médicos recorrem à pHmetria. "Trata-se de um equipamento instalado no tubo que, ao longo de 24 horas, mede a acidez bem ali", explica Cláudio Bresciani. Mais um método ainda pode ser convocado, a impedanciometria, que apura a quantidade e a intensidade dos refluxos.
Detectado o problema, aí, sim, os especialistas traçam a estratégia terapêutica. "Nove em cada dez pacientes se beneficiam do tratamento clínico", conta Bresciani. Ele é composto de drogas via oral conhecidas como inibidores da bomba de próton, cujo objetivo é diminuir a concentração do ácido no estômago. Sozinhos, no entanto, não fazem milagre - são essenciais alguns arranjos na rotina (veja quadro abaixo). Um novo estudo da Universidade de Copenhague, na Dinamarca, mostra que, seguidas à risca, mudanças de hábito associadas ao medicamento aumentam as chances de sucesso: aí, dois terços dos pacientes se livram da queimação.
Há casos, porém, que exigem cirurgia para fazer uma reforma entre o esôfago e o estômago, recobrando a pressão da válvula e, se preciso, corrigindo uma hérnia de hiato. Tudo isso é feito por laparoscopia, ou seja, demanda pequenos cortes para ser executada. No campo da pesquisa, há quem fale em procedimentos por endoscopia, em que não existiram nem sequer furos. "Mas até o momento os resultados não são tão bons", comenta Bresciani. Na seara dos remédios, não cessa a busca por fórmulas mais eficazes. "Existem estudos com drogas que agem diretamente no esfíncter", conta Nasi. Mas, se somarmos um estilo de vida saudável aos recursos já disponíveis, não é nenhuma missão impossível botar ordem nesse trânsito caótico e abrasador.
Conheça quem está mais sujeito ao refluxo:
Obesos
Eis mais um transtorno a ser incluído na lista de problemas comuns a quem está acima do peso. O excesso de gordura acarreta um aumento da pressão dentro do abdômen, contribuindo para que o conteúdo gástrico escoe em direção ao esôfago. Daí, é refluxo na certa.
Grávidas
A exemplo dos gordinhos, mulheres que carregam uma criança dentro do ventre têm de suportar uma maior pressão intra-abdominal. Isso facilita a expulsão do conteúdo gástrico no sentido contrário, atrapalhando o trabalho do esfíncter.
Bebês
Neles, o retorno da comida é fruto da imaturidade do esfíncter. "Metade dos pequenos regurgita até os 6 meses, o que é normal", diz a pediatra Tania Quintella, da Sociedade de Pediatria de São Paulo. "Só cogitamos a presença de uma doença se houver outro sintoma, como tosse, chiado no peito e baixo ganho de peso."
É só azia ou não é?
Costumamos recorrer a essa palavra para nos queixar de que uma fogueira foi acesa dentro do tórax, principalmente depois de um grande banquete. Nem sempre, porém, o ardor indica refluxo. "O termo azia, na verdade, quer dizer azedume na boca, mas passou a ser empregado como sinônimo de queimação na boca do estômago", diz o gastroenterologista Ary Nasi. As labaredas que caracterizam o refluxo não tendem a ficar concentradas somente nessa região. A impressão é que elas pegaram um elevador com destino à garganta. Não bastasse o peito em chamas, o refluxo ainda pode ser marcado por dores no tórax, dificuldade para engolir, gosto amargo na boca, irritação na garganta e, claro, a sensação de retorno da comida.
Medidas antirrefluxo
• Não beba muito líquido nas refeições, mastigue bem os alimentos e evite comer demais.
• Reduza a gordura do cardápio - ela torna a digestão mais lenta, favorecendo o refluxo.
• Maneire nas bebidas gasosas, como refrigerantes e cervejas.
• Não abuse de alimentos ou bebidas de teor ácido, como molhos de tomate industrializados, frutas cítricas e vinhos.
• Tome cuidado com o álcool, que, além de relaxar o esfíncter, aumenta a acidez no estômago.
• Não caia de boca no chocolate, que - pasme! - guarda substâncias capazes de tornar a válvula mais preguiçosa.
• Aguarde pelo menos duas horas para se deitar após comer.
• Na hora de dormir, procure elevar a posição do travesseiro numa altura de 15 centímetros.
Entenda por que o refluxo, quando deixa de ser tratado, pode ser o estopim para um câncer:
A sensação, bastante corriqueira, é a de que a refeição não caiu muito bem e ainda por cima quer voltar. Acompanhada desse tráfego às avessas, vem a queixa de que acionaram um lança-chamas dentro do tórax. O desconforto frequente, às vezes escoltado por uma dor no peito, sinaliza que uma confusão foi armada no esôfago, o tubo muscular encarregado de transportar os alimentos até o estômago. E a causa do suplício tem nome e sobrenome: refluxo gastroesofágico. "É o problema digestivo mais comum nos países ocidentais", afirma o gastroenterologista Ary Nasi, assessor médico do Laboratório Fleury, em São Paulo.
A doença, negligenciada por muita gente, parece estar em franca ascensão. Isso porque anda de braços dados com maus hábitos que, infelizmente, permanecem em voga: a dieta gordurosa, o sedentarismo e o resultado dessa combinação, a obesidade. Antes que um hipocondríaco se atreva a se autodiagnosticar, vale esclarecer que, se o fogaréu capaz de escalar abdômen acima ocorre somente de vez em quando, sobretudo depois daquela feijoada, trata-se de algo natural. "Todos nós temos esse refluxo ocasional", tranquiliza o gastroenterologista Cláudio Bresciani, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, na capital paulista.
O problema nasce quando essa tortura é recorrente e não depende só dos exageros à mesa. "Se acontecer mais de uma vez por semana, há uma suspeita da doença", esclarece Nasi, que também atua no Hospital das Clínicas de São Paulo. Tudo acontece porque o esfíncter, uma válvula que fica na divisa entre o esôfago e o estômago, relaxa demais em momentos inoportunos. "Sua função é impedir a volta da comida", diz Bresciani. Ao perder a pressão, porém, ele deixa de funcionar direito e permite que o conteúdo gástrico retorne, contrariando a lei da gravidade.
O azar é do esôfago. "Ele não está acostumado a conviver com a acidez que vem do estômago", observa o gastroenterologista José Galvão Alves, da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. O suco gástrico, essencial para a quebra dos alimentos, agride o tubo - e o pior é que ele pode subir com pedaços de comida. Com o tempo, o esôfago fica refém de uma inflamação permanente, o que cria um ambiente perfeito para tumores. "A irritação pode levar a alterações no órgão típicas de um quadro chamado esôfago de Barrett, o que aumenta o risco de um dos tipos mais comuns de câncer ali", alerta o cirurgião oncológico Felipe Coimbra, diretor do Departamento de Cirurgia Abdominal do Hospital A.C. Camargo, em São Paulo.
Mas por que cargas d’água o refluxo se torna uma pedra no esôfago de tanta gente? "Uma das principais razões é o esfíncter incompetente", aponta José Galvão Alves. O termo é aplicado quando a válvula afrouxa espontaneamente, deixando a acidez cair na contramão. "O álcool e o cigarro também favorecem seu relaxamento", lembra Ary Nasi. Essa porteira abre sem necessidade por outro motivo: a hérnia de hiato. "Ela acontece quando um pedaço do estômago escapa da musculatura do diafragma e fica fora do lugar", descreve Nasi. Nesse cenário, mais habitual entre os obesos, o conteúdo gástrico reflui facilmente e o esfíncter não consegue freá-lo.
Flagrar o refluxo não é importante apenas para abrandar o incêndio. "Além da inflamação no esôfago, a doença pode influenciar crises de asma, corromper o esmalte dentário e causar tosse crônica e rouquidão", enumera Galvão. A via-crúcis do diagnóstico começa, é claro, com a história do paciente. O primeiro exame requisitado é a endoscopia, que avalia se há uma irritação no esôfago. "Mas um resultado normal não afasta o refluxo", diz Nasi. Para esclarecer a dúvida, os médicos recorrem à pHmetria. "Trata-se de um equipamento instalado no tubo que, ao longo de 24 horas, mede a acidez bem ali", explica Cláudio Bresciani. Mais um método ainda pode ser convocado, a impedanciometria, que apura a quantidade e a intensidade dos refluxos.
Detectado o problema, aí, sim, os especialistas traçam a estratégia terapêutica. "Nove em cada dez pacientes se beneficiam do tratamento clínico", conta Bresciani. Ele é composto de drogas via oral conhecidas como inibidores da bomba de próton, cujo objetivo é diminuir a concentração do ácido no estômago. Sozinhos, no entanto, não fazem milagre - são essenciais alguns arranjos na rotina (veja quadro abaixo). Um novo estudo da Universidade de Copenhague, na Dinamarca, mostra que, seguidas à risca, mudanças de hábito associadas ao medicamento aumentam as chances de sucesso: aí, dois terços dos pacientes se livram da queimação.
Há casos, porém, que exigem cirurgia para fazer uma reforma entre o esôfago e o estômago, recobrando a pressão da válvula e, se preciso, corrigindo uma hérnia de hiato. Tudo isso é feito por laparoscopia, ou seja, demanda pequenos cortes para ser executada. No campo da pesquisa, há quem fale em procedimentos por endoscopia, em que não existiram nem sequer furos. "Mas até o momento os resultados não são tão bons", comenta Bresciani. Na seara dos remédios, não cessa a busca por fórmulas mais eficazes. "Existem estudos com drogas que agem diretamente no esfíncter", conta Nasi. Mas, se somarmos um estilo de vida saudável aos recursos já disponíveis, não é nenhuma missão impossível botar ordem nesse trânsito caótico e abrasador.
Conheça quem está mais sujeito ao refluxo:
Obesos
Eis mais um transtorno a ser incluído na lista de problemas comuns a quem está acima do peso. O excesso de gordura acarreta um aumento da pressão dentro do abdômen, contribuindo para que o conteúdo gástrico escoe em direção ao esôfago. Daí, é refluxo na certa.
Grávidas
A exemplo dos gordinhos, mulheres que carregam uma criança dentro do ventre têm de suportar uma maior pressão intra-abdominal. Isso facilita a expulsão do conteúdo gástrico no sentido contrário, atrapalhando o trabalho do esfíncter.
Bebês
Neles, o retorno da comida é fruto da imaturidade do esfíncter. "Metade dos pequenos regurgita até os 6 meses, o que é normal", diz a pediatra Tania Quintella, da Sociedade de Pediatria de São Paulo. "Só cogitamos a presença de uma doença se houver outro sintoma, como tosse, chiado no peito e baixo ganho de peso."
É só azia ou não é?
Costumamos recorrer a essa palavra para nos queixar de que uma fogueira foi acesa dentro do tórax, principalmente depois de um grande banquete. Nem sempre, porém, o ardor indica refluxo. "O termo azia, na verdade, quer dizer azedume na boca, mas passou a ser empregado como sinônimo de queimação na boca do estômago", diz o gastroenterologista Ary Nasi. As labaredas que caracterizam o refluxo não tendem a ficar concentradas somente nessa região. A impressão é que elas pegaram um elevador com destino à garganta. Não bastasse o peito em chamas, o refluxo ainda pode ser marcado por dores no tórax, dificuldade para engolir, gosto amargo na boca, irritação na garganta e, claro, a sensação de retorno da comida.
Medidas antirrefluxo
• Não beba muito líquido nas refeições, mastigue bem os alimentos e evite comer demais.
• Reduza a gordura do cardápio - ela torna a digestão mais lenta, favorecendo o refluxo.
• Maneire nas bebidas gasosas, como refrigerantes e cervejas.
• Não abuse de alimentos ou bebidas de teor ácido, como molhos de tomate industrializados, frutas cítricas e vinhos.
• Tome cuidado com o álcool, que, além de relaxar o esfíncter, aumenta a acidez no estômago.
• Não caia de boca no chocolate, que - pasme! - guarda substâncias capazes de tornar a válvula mais preguiçosa.
• Aguarde pelo menos duas horas para se deitar após comer.
• Na hora de dormir, procure elevar a posição do travesseiro numa altura de 15 centímetros.
Entenda por que o refluxo, quando deixa de ser tratado, pode ser o estopim para um câncer:
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